quarta-feira, 14 de novembro de 2012

As histórias de dona Hortênsia e do Dr. Mattos da Cunha, que eram para se cruzar mas não se cruzaram



Dona Hortênsia, a passar agora o seu octogésimo sétimo outono, desde mil novecentos e setenta e quatro que acorda cedo e entusiasmada em dia de eleições, aparecendo logo na abertura das urnas na escola do seu bairro para votar no Partido Comunista. Há alguns meses, ainda passava a sua octogésima sétima primavera, apareceu-lhe uma coisa na perna e o inchaço e a comichão não a deixam viver em paz. Já foi ao médico, que disse que aquilo passava, mas não passou, pelo que decidiu marcar uma consulta da especialidade. Meses de espera e, finalmente, no início de outubro recebe a boa nova de uma consulta no dia catorze de novembro com o Dr. Mattos da Cunha. Ainda faltava um mês e meio, mas dona Hortênsia ficou animada. Chegou finalmente o dia catorze de novembro e dona Hortênsia, sabendo que havia greve, começou a ligar para o hospital às oito horas da manhã. Ficou em espera até às nove horas e desistiu, com medo de não chegar a tempo à consulta. Vestiu a sua melhor roupa e foi apanhar os transportes que a levariam ao hospital. Nada, a não ser uma fila interminável, ali e nos táxis, onde gastaria de bom grado dez dos trezentos e vinte seis euros e catorze cêntimos que recebe mensalmente de pensão. Chegou às dez e quarenta e cinco e bateu com o nariz na porta. Nem médicos nem pessoal administrativo. Só os seguranças de uma empresa privada e alguns auxiliares que queriam entregar os recibos verdes nesse dia. Dez euros e duas horas depois voltou para casa sem consulta mas com comichão.

 
O Dr. Mattos da Cunha acordou tarde nesse dia catorze de novembro, aproveitando que não tinha de ir trabalhar. Tomou um belo pequeno almoço, preparado pela sua empregada, e leu o seu jornal preferido online, lendo com desprezo as notícias da adesão à greve dos mineiros em Trás-os-Montes. Imaginou-os sujos de carvão e a cheirar a suor. Para o almoço estava combinado um almoço com os seus dois filhos, um deles piloto de aviões comerciais, o outro médico como o pai, aproveitando a rara oportunidade em que nenhum deles trabalhava. A sua mulher foi ao centro comercial comprar prendas para os netos, estranhando a quantidade de clientes numa quarta-feira de manhã. Felizmente as lojas tinham reforçado o pessoal para esse dia. O Dr. Mattos da Cunha almoçou no seu restaurante preferido, mas teve de sair relativamente cedo, às quinze horas e trinta minutos, porque as consultas no seu consultório privado começam às dezasseis horas todas as quartas-feiras.

3 comentários:

  1. O Dr. Mattos era especialista em quê? Comichão?

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  2. O Dr. Mattos era especialista na propagação de um estranho vírus de comichões... E, afinal, dizem as más línguas que foi à pesca.

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