segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Caridade ou a alegria nos pequenos gestos? - Lado A

 
Ao regressar do trabalho parei num semáforo. Vi uma pessoa a dirigir-se ao carro pelo que, sem sequer pensar nisso, tranquei a porta e quando ele se aproximou da minha janela abanei automaticamente a cabeça, como faço sempre, em resposta aos mil pedidos de esmola com que sou confrontada ao longo da semana, seja na rua, no metro ou dentro do carro.
 
Mas desta vez foi diferente... Olhei para o lado, distraidamente, ao mesmo tempo que abanava a cabeça, e a tristeza que vi no olhar daquele senhor apanhou-me desprevenida! Tinha rugas e cabelo branco mas a sua idade era completamente indefinida. Não sei se tinha mau aspecto porque nem reparei. Fiquei momentaneamente presa àqueles olhos que expressavam um sentimento profundo de abandono e logo a seguir o semáforo ficou  verde e segui o meu caminho.
 
No entanto, ao contrário das outras vezes em que abano automaticamente a cabeça e sigo, hoje não conegui ficar indiferente, nem deixar de pensar naquilo o resto do caminho.
 
É impossível dar a toda a gente que me pede mas será que, em vez de dizer por definição que não, não deveria avaliar cada caso e dar qualquer coisa a quem me toque de alguma forma? A regra de dizer sempre que não é mais fácil, desresponsabiliza-me...
 
Ele dirá certamente que a caridade não resolve nada... que no fundo é uma forma de os mais ricos conseguirem evitar que os pobres se revoltem e manter a sociedade como está e, por isso, dar esmola é errado...
 
Mas eu não consegui evitar pensar: Se eu acredito que grande parte da felicidade está nos pequenos prazeres diários, não deveria aplicar isso também aos outros? Não posso fazer com que aquele senhor deixe de ser pobre mas se calhar posso proporcionar-lhe uma pequena alegria e tornar o dia dele menos mau. Se calhar, se eu lhe der qualquer coisa ele pode nesse dia comprar um lanche e ao saboreá-lo perder por momentos alguma da tristeza tão enraizada que os seus olhos espelhavam...
 
Ele dirá em resposta que eu sou ingénua... Alguém me dá uma opinião?
 

2 comentários:

  1. Já tantas vezes fiquei com essa sensação, quando alguém me pede uma esmola. Aquele choque de ver uma pessoa que parece estar genuinamente num sofrimento que eu talvez nem nunca sequer tenha imaginado. Por momentos penso que com a esmola posso tornar a vida desse alguem um pouco menos sofrida... e dou. Sinceramente sei que é apenas um alívio momentâneo da minha consciência que, depois nem sequer resulta, pois tenho a certeza de que a vida desse alguém não melhorou em nada (apenas ficou ainda um pouco mais abaixo na sua dignidade humana). Por outro lado eu fico ainda pior porque fui chamada à atenção de que permito, pela minha inação, que existam estas pessoas. Esta é a minha opinião...

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  2. O que nas pessoas estranhas, desviadas por passo próprio ou enxotadas pelos outros, o fascinava era a absoluta liberdade individual com que faziam as suas escolhas. Num louco ou num pedinte que vagueava pelas ruas a pedir pão e sopa e que, de noite, tal qual os outros humanos, só queria dormir, Buchmann via quem poderia escolher em liberdade pura, e sem consequências, a sua moral individual. Moral que nem sequer tem um par, um elemento que a acompanhe.
    Quem iria contestar a «vida imoral» de um pedinte ou de um louco? Aqueles homens tinham já em si, pela sua diferença, uma carga de imoralidade universal e profunda, que os tornava imunes às pequenas imoralidades praticadas.
    Um louco, tal como um pedinte, não era imoral. Eram indivíduos sem cópia, semelhantes a um rei; alguém que não tem par, que não tem aquele que está ao seu lado. E por isso não há para esses homens escorraçados, como não há para o homem mais poderoso, qualquer critério de comparação.
    Buchmann olhava com admiração para aqueles homens que traziam no bolso um sistema jurídico único, com o seu nome no fim.
    De certa maneira, era isso que Buchmann desejava; ser portador de um sistema legal cujas leis só fossem aplicadas a si; ser portador de uma moral que não é a do mundo civilizado nem a do mundo primitivo; que não é a moral da cidade ou sequer a moral da sua família mas a moral que tem o seu nome, apenas o seu, escrito por cima.

    Excerto de Aprender a Rezar na Era da Técnica (Gonçalo M. Tavares)

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